NÓMADAS - REVISTA CRÍTICA
DE CIENCIAS SOCIALES Y JURÍDICAS 12-2005/2 | Universidad Complutense de Madrid | ISSN 1578-6730 |
Chauí, Marilena de Sousa: O que é ideologia |
Wellington Soares da Costa >>> CV |
Os filósofos da Grécia
Antiga ocupam-se de um objeto de estudo considerado importantíssimo:
o movimento, compreendido como toda e qualquer mudança promovida
em uma realidade, ou seja, mudança qualitativa, quantitativa, espacial,
geracional e corruptora. Aristóteles oferece sua contribuição
em tais análises através da teoria das quatro causas do movimento:
causas material, formal, motriz e final, sendo hierarquicamente superior
às demais a última das causas alinhadas.
A supramencionada teoria retrata
a vivência histórico-social dos gregos à época,
com a divisão de sua sociedade em dois grupos: cidadãos (causa
final) e escravos (causa motriz), no sentido de que a realidade na qual
se vive molda as idéias dos indivíduos e estes, mediante suas
idéias, constróem sistemas explicativos dessa realidade. Assim,
Chauí diz: “Um dos traços fundamentais da ideologia consiste,
justamente, em tomar as idéias como independentes da realidade histórica
e social, de modo a fazer com que tais idéias expliquem aquela realidade
que torna compreensíveis as idéias elaboradas” (p. 10-11).
Isso significa que as idéias
“são, na verdade, expressões dessas condições
reais, porém de modo invertido e dissimulado. Com tais idéias
pretende-se explicar a realidade, sem se perceber que são elas que
precisam ser explicadas pela realidade” (p. 16). A ideologia “é
um ‘fato’ social justamente porque é produzida pelas
relações sociais, possui razões muito determinadas
para surgir e se conservar, não sendo um amontoado de idéias
falsas que prejudicam a ciência, mas uma certa maneira da produção
das idéias pela sociedade, ou melhor, por formas históricas
determinadas das relações sociais” (p. 31).
Mas as idéias, ao pretenderem
explicar a realidade, camuflam-na, ocultam-na, de sorte que os interesses
da classe dominante não sejam violados, porém conservados,
protegidos e promovidos, haja vista o fato de essas idéias legitimarem
a cruel dominação de um grupo de homens sobre outros por intermédio
da apresentação de uma realidade pseudo verdadeira e supostamente
justa, ou seja, algo é apresentado como real, verdadeiro e justo,
num flagrante arremedo do verdadeiramente real, do realmente verdadeiro e
do real e verdadeiramente justo. Daí dizer-se que, sob a ótica
positivista, “quando as ações humanas – individuais e sociais
– contradisserem as idéias, serão tidas como desordem, caos,
anormalidade e perigo para a sociedade global” (p. 28), em razão
de a ordem e o progresso comporem a bandeira do positivismo em seu receituário
de proteção e desenvolvimento dispensado às pessoas
via sociedade, quando, em verdade, o que se quer é a manutenção
do chamado status quo.
A concepção de
Marx deriva de sua doutrina acerca da história, entendida esta como
movimento incessante de produção e superação
de contradições, que são nada menos nada mais que negações
internas existentes numa única realidade. Essas negações
realizam-se tão-somente nas relações que dois elementos
mantêm entre si. É nessas relações
que surge a negação interna.
Ao referir-se à filosofia
hegeliana, Chauí (p. 41) alinha o seguinte:
Essa alienação
é promovida até os dias atuais pelos que detêm o poder
político-econômico, os quais tornam a máquina estatal
um mero instrumento de realização de seus objetivos. A superestrutura
do Estado fica, pois, à mercê dos interesses de uma classe
que domina e explora contingentes humanos – “... a ideologia é um
dos instrumentos da dominação de classe e uma das formas da
luta de classes. A ideologia é um dos meios usados pelos dominantes
para exercer a dominação, fazendo com que esta não
seja percebida como tal pelos dominados” (p. 86). Percebe-se isso quando
a lei reza que todos são iguais.
O Direito entra em cena para
juridicizar e “legitimar” essa situação através de
legislações, muitas das quais se tornam guardiães do
capital, protetoras do patrimônio, em detrimento do que realmente deve
ser feito: conservar, proteger e promover a dignidade das massas populares,
a dignidade humana. “O papel do Direito ou das leis é o de fazer com
que a dominação não seja tida como uma violência,
mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita” (p.
90). Por sua vez, o papel da ideologia é o de travestir de legitimidade
o que é legal.
Marx retoma a dialética
hegeliana e dá-lhe roupagem nova, ao afirmar que a contradição
é a luta de classes e “se estabelece entre homens reais em condições
históricas e sociais reais” (p. 47), destacando-se o trabalhador,
que vende sua força-de-trabalho no modo capitalista de produção:
“A dialética é materialista porque seu motor não é
o trabalho do Espírito, mas o trabalho material propriamente dito”
(p. 53), “a forma determinada das condições de trabalho,
(...) forma que é sempre determinada por uma contradição
interna, isto é, pela luta de classes” (p. 54).
Marx discorre sobre a alienação
do trabalho, asseverando que “O trabalho alienado é aquele no qual
o produtor não pode reconhecer-se no produto de seu trabalho, porque
as condições desse trabalho, suas finalidade reais e seu
valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário
das condições do trabalho” (p. 55).
“cada indivíduo passa
a ter uma atividade determinada e exclusiva que lhe é atribuída
pelo conjunto das relações sociais (...). Cada um não
pode escapar da atividade que lhe é socialmente imposta. A partir
desse momento, todo o conjunto das relações sociais aparece
nas idéias como se fossem coisas em si, existentes por si mesmas
e não como conseqüência das ações humanas.”
(p. 64).
Portanto, passa-se a idéia
de que o mundo é como é em razão da ordem natural das
coisas, o que não pode ser mudado – isso gera alienação
no sentido comum da palavra, de forma que não se questiona o status quo vigente, sendo a todos imposta a ideologia da classe
dominante. Esse grupo que domina os demais detém as rédeas
que controlam o governo do Estado, deste fazendo o aparato para a sua manutenção
no poder, graças, inclusive, à difusão ideológica.
Numa pretensa “legitimação”
da divisão social do trabalho, o Estado “precisa aparecer como uma
forma muito especial de dominação: uma dominação
impessoal e anônima, a dominação exercida através
de um mecanismo impessoal que são as leis” (p. 70).